sexta-feira, dezembro 31, 2010

Em Vias de Extinção

Só porque sim. Por ter de voltar outra vez. Por não querer afirmar que este era o fim. As tenebrosas sombras da adolescência, os desvarios de encontros ao primeiro toque. Eles estão de volta. Espécie condenada. Explosões mudas. Adoro o teu silêncio, a tua escuta receptiva, a empatia dos teus olhos. Parece tudo tão evidente. Temo que tenha de voltar. Aéreo e despenteado. E dantes era tudo tão bom. Éramos tão remediados. E depois demos nisto. Roupas demasiado largas para o tamanho da alma. Poses de enfado meticulosamente planeadas. Foi este o nosso jogo. Todos quisemos pagar para ver. Sonhar agarrar o fogo que nos aquece por dentro e manter acesa essa chama imaginária durante todos os invernos da nossa existência. A eloquência esmaga-te. Fiz-te sem querer. Mas é bom sentir o teu conforto. Nem que seja por não haver mais nada. Acho que já nada resta, estamos a andar em círculos. Como foi possível deixar perder tanto tempo, só nós não sabemos. Corramos contra o tempo antes que o tempo nos devore à sua passagem.

quinta-feira, novembro 11, 2010

Água Na Minha Boca

Foi um tema tabu durante vários anos, mas decidi quebrar este silêncio para ecoar pelo mundo (ahahahahah!, tanta ingenuidade…) esta copiosa realidade: Umberto Smaila, o italiano que apresentou “Colpo Grosso”, e Júlio Costa, mais conhecido como o bigodes do sacrossanto Trio Odemira, são uma e a mesma pessoa.
Pois é: “a igreja estava toda iluminada”, mas as mamas das “ragazze cin-cin” também, especialmente quando se colavam estrelas douradas e purpurinas nos mamilos. Francamente, ó Júlio: de romântico não tens nada, queres é ver gajas nuas. Não te censuro. E se cantas bem, e se falas tão bem italiano, não deves ter dificuldade em engatá-las, meu maroto. Por outro lado, o que Smaila, italiano de Verona, veio fazer para Odemira ultrapassa-me completamente. Ao menos que fosse para Vila Nova de Milfontes, que ainda tem uma praia e tal. Mas se calhar já nessa altura não se conseguia arranjar quarto. Deve ter sido na altura em que o pessoal determinou que o litoral alentejano é que é fixe e exclusivamente para pessoal fixe.
Enfim, falar de Smaila é falar do “Colpo Grosso” e falar do “Colpo Grosso” é falar do primeiro (e único?, considerando que o que vemos no Big Brother é uma transposição desinspirada de alguns programas do National Geographic) concurso explicitamente erótico da televisão nacional. Era 1992, a SIC dava os primeiros e ousados passos, com a Júlia Pinheiro a apresentar tudo quanto era programa e a manter um aspecto bastante razoável para a época, antes de descambar na lontra histérica que aparece de robe em outdoors. “Água na Boca” foi a tradução portuguesa. Recordamos com muito carinho o “Água na Boca”, assim como recordamos com ternura o nosso primeiro beijo; na verdade, o “Água na Boca” deve ter propiciado a primeira punheta a muito boa gente. E ficávamos até tarde durante os Sábados só para vermos aquela banhada que, por feliz acaso, também continha gajas a striparem-se. Concorrentes incluídas. E havia lá concorrentes a que só faltava ter um rótulo na testa a dizer “eu quero uma profissão na moda e sou bem vaquinha como podem ver”, entre outras perfeitamente aberrantes e simples vacas sem outros grandes objectivos que não proclamar a sua vaquice perante as câmaras. De outro modo, e a menos que fossem lésbicas, que sentido faria concorrerem mulheres a um concurso cujo principal objectivo… era despir todas as outras mulheres? Isto, claro, descontando que haveria divertimento extra no backstage, para além de um razoável prémio monetário.
Do que me lembro, havia uns jogos de cartas (o “caldo” e “fredo”, um “sobe-e-desce” em que as cartas possuíam meninas mais ou menos despidas e o concorrente adivinhava se na próxima carta ela estaria mais ou menos despida), uma espécie de slot-machine e escolher um fruto. Não era um fruto qualquer, mas uma menina que personificava esse fruto e que abria o soutien para revelar uma estrela, que valia pontos, ou uma fruta, que não valia nada. Estas “frutas”, coisa que deve ter inspirado Pinto da Costa, também ele um punheteiro afamado, nas suas conversas escutadas, eram as “ragazze cin-cin”. Eram, que me lembro, 8 frutas: morango (uma das mais escolhidas), ananás, kiwi, cereja, limão, uva, laranja (ou tangerina?) e mirtilo, que era uma novidade para mim, mas que também era a forma de meter lá um bikini azul – dado que os bikinis eram da cor da fruta. Na prática, o papel das ragazze cin-cin era o de participarem neste jogo e de dançarem e sorrirem incessantemente durante o resto do programa. Especialmente durante a altura dos strips propriamente ditos.
Ora bem, o core-business do “Água na Boca” era precisamente os strips. Que podiam ir do simples tirar de camisa e saia até ao nu quase integral – sobrava sempre uma tanguinha no mínimo –, dependendo da pontuação dos concorrentes nos vários jogos. E quem fizesse jackpot tinha direito a uma tipa que se despia mesmo toda, depois de dançar pelo set inteiro, levando à loucura a banda residente. E o pessoal ficava abismado com uma pintelheira vaginal, gravava em VHS e mostrava aos amigos, em autênticas tertúlias praticadas em punhetódromos improvisados. Havia umas 8 strippers que estavam sentadas nuns banquinhos representativos do seu país/ região europeia até serem escolhidas. Mas aquilo dos países era balela, porque numa semana a mesma tipa tanto era grega como francesa. Acho que era um truque para ninguém escolher sempre o mesmo país porque gostava da gaja. O grupo de strippers só costumava mudar quando havia jackpot.
Era a candura da adolescência a despontar e Umberto, o grande e bigodudo Umberto Smaila, estava lá, preenchendo o nosso imaginário. Ou o tipo do Trio Odemira, quem sabe. Depois viria a pornografia a sério e toda a água do “Água da Boca” secou, sem muita graça. Depois de ter visto Smaila, Ron Jeremy já não me escandalizava. E depois de Ron Jeremy já nada me escandalizou – pronto, eventualmente a Júlia Pinheiro a cantar. O softcore deixou de ser suficiente. Não era possível aguentar todo um programa, de quase uma hora, para ver umas mamas, quando na cassete ao lado havia fornicadelas de cinco em cinco minutos. Mas, concedo, algumas gajas do “Água na Boca” eram mesmo boas. Algumas das ragazzas celebrizaram-se inclusivamente como artistas porno (a Zara Whites era a cereja, lembro-me bem, sua safada) e foi giro vê-las sem as restrições próprias do “Água na Boca”, a abocanharem pénis erectos com o souplesse que as caracterizava.
Porém, havia uma mamalhuda que nunca me saiu da mente, passados estes anos todos. Era uma co-apresentadora e as co-apresentadoras, para mal de nós, nunca se despiam, embora fossem dos cromos mais apetecíveis. E não era a Tiziana, que veio numa fase posterior, e que tinha muita gordura naqueles seios. Tiziana era mesmo uma italiana, tinha cara de vaca e nenhum jeito para o negócio da apresentação – que, creio, nunca quis seguir com muito rigor. Cheguei a vê-la num programa contemporâneo despida a sério (não se via a pintelheira, porém) e corroborei que tinha, efectivamente, um enorme par. Eu estou a referir-me é à sumptuosa galesa Amy Charles. My god, how she was hot! Era elegante, bonita, grande sorriso e um soberbo, majestoso par de mamas que me deixava a sonhar acordado. Fazíamos concursos para enumerar uma lista das maiores mamalhudas que conhecíamos e era consensual que, muito à frente da Cicciolina, afastada da Marisa do 7ºB que já tinha chumbado um ano e que por isso tinha um ano de desenvoltura extra e um pouco acima da mãe do Quim, lá cima no Olimpo das Mamas, estava a bela Amy. E foi assim durante uns tempos, principalmente até surgir o advento do silicone massificado. Mas, atenção: Amy era 100% natural e isso vale muito. A minha grande frustração em relação à Amy foi ter ficado sempre à espera que ela se despisse… e nada, ela apenas metia aqueles airbags peitorais tapados por um soutien amarelo (era sempre amarelo!) à frente das câmaras, como que a desafiar-nos para ficarmos loucos.
Felizmente, ela também foi uma stripper numa versão não vista por cá, mas justamente recordada pelos seus fãs na internet. Obviamente, deram-lhe um nome artístico (e que imaginação tinham os tipos: era a Opulenta, a Besame Mucho, a Maria La O,…). E foi anos depois que pude analisar com o detalhe necessário e adequado o corpo magnificente desta minha musa prematura. Amy, Amy… dizem que cantavas, mas eu cá acho que encantavas. Pelo que sei, nunca fez porno e hoje vive no País de Gales, já quarentona. Devia ser monumento nacional, à frente dos Manic Street Preachers e do Ryan Giggs.

sexta-feira, outubro 01, 2010

Adeus Ao Desejado

Lisboa, finais de 1577. No seu palácio, El-Rei D. Sebastião, Rei de Portugal e dos Algarves, d'Aquém e d'Além-Mar em África, Senhor da Guiné e da Conquista, Navegação e Comércio da Etiópia, Arábia, Pérsia e Índia, etc. (o etc. incluía uma ilha de turismo gay e uma offshore que se achou por bem não incluir no título – e também porque havia coisas que supostamente eram dele e das quais ele nem sabia o nome), tudo pela Graça de Deus, encontra-se excitado. E isto não só porque viu um homem nu a ser queimado no auto-da-fé do dia passado (“que pena aquele enorme pénis ser judeu”, confessou em alta voz), mas também porque estava entusiasmado em espalhar a sua fé por aí fora. À porrada, pois claro.

O ano não foi escolhido inocentemente. Toda a gente sabe que o punk arrancou em força em 77. Naquele ano, havia todo um clima de enorme contestação no ar, os jovens queriam partir tudo o que havia à frente e não havia muito mais que pedra. E isso não era cool. Ver pessoas a arder entretinha até certo ponto, mas depois as cinzas humanas faziam mal aos pulmões. Fornicar com irmãs e primas já não satisfazia como dantes e o número de mongolóides na população subia a olhos vistos. O que vale é que se lhes dava com uma enxada nos cornos e deixava de haver problema. Não havia nada de mais interessante que fazer do que lavrar a terra, inscrever-se num mosteiro ou partir durante meses num barco para o ultramar para ficar fechadinho na fortaleza a repelir os ataques indígenas – isto se conseguissem lá chegar. Eram estas as perspectivas dos jovens portugueses, se não morressem entretanto com uma doença tramada da qual ninguém sabia o nome mas que seria certamente castigo por actos pouco cristãos.
Basicamente, o pessoal estava inconformado com o status quo e desejava levar o cristianismo para um novo patamar de brilhantismo. E Portugal era o ponta-de-lança do cristianismo, acutilante e sempre em jogo, pronto para encostar a bola em nome do Papa. Sebastião, um jovem esclarecido pelos anos e anos de educação fortemente cristã, representava essa mole de descontentes ao mais alto nível. Era ele e as Pistolas Sexuais, um grupo paramilitar que fez furor durante algum tempo mas que rapidamente desapareceu num navio misteriosamente afundado ao largo das Canárias. Portanto, era ele o porta-voz inquestionável. Sempre rodeado de castos frades, priores, cardeais, bispos, arcebispos e dildos gigantes (que eram morcelas gigantescas e varapaus no século XVI), começou a delinear um plano ousado para reconquistar a alegria cristã e devolver a glória à gloriosa e orgulhosamente cristã nação lusitana.

Sebastião – Rebentar com toda a escumalha não-cristã! F**a-se, é partir com aquela m***a toda!
Frade – Mas, sua alteza, como fazer isso?
Sebastião – É ir lá e espetar-lhes com um avião nas trombas, mesmo em Meca! F**a-se, vamos atacar-lhes antes que ele nos ataquem!
Cardeal – Ainda não há aviões, majestade.
Sebastião – É mesmo por causa disso, car***o! Vamos fo**r-lhes antes que eles nos f**am!
Frade – O que a sua eminência o Cardeal da Brandoa estava a querer dizer era que nem nós temos aviões, sua alteza. E, além do mais, os mouros estão na terra deles e têm andado bastante calmos.
Sebastião – Que se f**a! Estão calmos agora, mas não vão estar para sempre! Temos que ir lá fo**r-lhes as fuças! Onde dói mais, na terra deles! Passa-me aí o vinho, car***o.
Bispo – Sua majestade, não nos devíamos concentrar em conservar as terras mais proveitosas, desenvolver a nossa terra e queimar apenas os hereges dentro das nossas possessões? Isso é estarmos a desviar meios do que é essencial e a arranjar mais problemas desnecessariamente…
Nobre (Punk) – Ouça El-Rei, bispo, ouça el-rei! Temos que nos mexer! Estou farto de violar camponesas! Quero ir rebentar trombas à séria! São infiéis, car***o!
Arcebispo (a ficar convencido) – Pá, vamos lá pensar bem: para que é que serve esta vida?
Sebastião (a ficar bêbado) – Para fod***os não-cristãos, car***o! E para ver corpos de escravos musculados e com enormes pénis a desfilar à frente e mamar neles!
Frade (benze-se) – Minha nossa senhora! Há gays na corte!
Sebastião – LGBTs, por favor. Haja mais respeito.
Bispo – Sua majestade, por falar nisso, eu não tenho dúvidas que o facto de sua majestade apreciar essas coisas é compatível com a cristandade… mas não devia pensar na sua descendência?
Sebastião – Quê? Tipo… ter um puto?
Bispo – Sim. Só naquela… para evitar as cenas da sucessão… mantermos a independência do exterior e coisas assim…
Sebastião – Bah! Não gosto de putos! E as mulheres são rascas, neste século não se depilam, cheiram mal e andam sempre a chorar por malas e sapatos que ainda nem sequer existem! E não há tempo para isso! Temos é que nos organizar e irmos para a porrada! Isto é por Cristo, car***o!
Arcebispo (rendido) – Bolas, é por Cristo, fo**-se! Será um arraial de porrada divino, à moda antiga! Vamos ser recebidos em glória no céu por Jesus himself e vai ser só curtir! ‘Bora lá!
Sebastião – Ouçam o arcebispo, car***o! Não sou eu a dizer isto, é o arcebispo, car***o! Vamos honrar os nossos antepassados e vingá-los à maneira!
Frade (receoso) – Não sei, alteza… parece-me perigoso…
Sebastião – F**a-se, e eu é que sou o LGBT por aqui… grande con*s que me saiu este eclesiástico…
Nobre (dos Clash) – É mem’isso, el-rei! É mem’isso! Vou já! Tenho ali os meus homens e cavalos já prontos! É quando quiser, fo**-se!
Sebastião – Homens e cavalos? Hmm, gosto disso, mas primeiro os homens, que se os cavalos entram a matar fico sem condições para levar com os homens depois…
Nobre (dos Clash) – Era só para a luta, el-rei. Eles são machos a sério, não sei se me entende…
Sebastião – Ah, ‘tá bem, ‘tá bem… mas, pronto, se eles mudarem de ideias, já sabes.
Bispo (não convencido) – Sua majestade, por favor, reconsidere… pode libertar as suas frustrações aqui… há tanto judeu para queimar… tanto povo para oprimir… tanta palavra de Deus por espalhar à machadada… para quê nos cansarmos?
Sebastião – P’ó car***o! Eu já decidi! E eu sou PORTUGAL, car***o! Quem é o maior?
Coro – PORTUGAL!
Sebastião – Quem é que manda nesta mer**a toda (segundo Tordesilhas)?
Coro – PORTUGAL!
Sebastião – Quem é que é o país preferido de Deus?
Coro – PORTUGAL!
Sebastião – Quem é que tem os maiores car***os do mundo?
Coro – (silêncio)
Sebastião – F**a-se, quem é?
Nobre (punk) – Sei lá… italianos?
Nobre (dos Clash) – Os castelhanos? Não, esses não, pá…
Arcebispo – Eu sabia esta pá… Está debaixo da língua… Aliás, já tive alguns debaixo da língua… ai, eu sei mesmo esta!…
Sebastião – OS PORTUGUESES, pá!
Coro – Aaaaah!! Pois é!!
Sebastião – Quem quer ir comigo?
Coro – NÓÓÓÓÓÓÓÓÓS!!!!
Sebastião – E quem vai à me**a do concerto dos U2?
Coro – BUUUUUUUUUUU!!!!!!
Bispo – Eu! Comprei bilhete no ano passado! Nem pensem que não vou!
Sebastião – P’ó car***o, ó bispo. Nem como peça de xadrez serves. Se não fosses tão cristão queimava-te no próximo auto-de-fé.

E lá foram eles, felizes, contentes e muito bêbados, em orgias múltiplas no Verão de 1578 por essa pradaria fora até Cádis, sítio onde os castelhanos acharam meio bizarro haver uma parada gay (“LGBT, por favor!”, corrigiu el-rei D. Sebastião) tão numerosa. As tímidas vozes de preocupação que deixaram em Lisboa já não se ouviam pois aquilo era uma trupe de jovens com muito sangue na guelra. O Filipe espanhol encolheu os ombros, disse “joder, coño” e foi lá tratar das suas coisas, que aquilo não era para ele – ele sempre preferiu correr com os mouros da terra dele e deixá-los em paz no ninho de vespas que era o inóspito deserto deles. E depois lá haveria de apanhar qualquer sobra.

Chegaram a Marrocos, o Manuel Cajuda disse-lhes olá e pôs-se a milhas, não fosse o diabo tecê-las e ele hipotecar de vez a hipótese de treinar a Selecção, houve um mouro muita maluco recomendado pelo Manuel José que se juntou com mais um exército de 6000 mouros fratricidas e puseram-se logo a caminho. Perto de Alcácer Quibir (“F**a-se, quantas Alcáceres é que há? Uma Alcácer do Sal não chega, car***o?”, protestou Sebastião), uma multidão de árabes aguardava-os junto a um rio. Eram para aí o dobro ou o triplo do exército de Sebastião, tinham acabado de vir de uma rave com som techno-house com influências xiitas e estavam armados até aos dentes, à boa maneira árabe. Pareciam drogados, de tão vermelhos que estavam os olhos e na verdade estavam mesmo, o que tornava-os ainda mais perigosos. Alguns nobres acagaçaram-se logo, “f**a-se, já fomos, daqui já não saimos”, assim que viram os mouros a sacarem das catanas e a rodearem-nos. Houve um que foi logo ao chão, outro disse “eh pá, olha aí essa cena, pá!”, gerou-se um burburinho e pronto, começou a batalha.
Sebastião não foi de modas, estava com uma grande tesão e desembainhou a espada, lançando-se a cavalo para cima dos mouros, mesmo à maluco. “A eles, car***o! E esta me**a é toda nossa, allez, allez; e esta me**a é toda nossa, allez, allez!”, bradou em jeito de motivação das tropas, mas as tropas não corresponderam. Foi a última vez que foi avistado.

Depois foi um fartote de porrada mouro, que até deu para eles fumarem as cenas deles enquanto decapitavam os portugueses e os seus aliados. Poucos sobreviveram. Filipe de Espanha sorriu lá no seu íntimo e disse “ya está, Portugal es nuestro! Venga, venga!”. Cá em Portugal, o povo ainda aguardou durante algum tempo, mas quando se apercebeu que o Facebook de Sebastião não era actualizado entrou em pânico. Inventaram-se as mais mirabolantes histórias para a negação da dura realidade que era a perda da soberania nacional, como aquela de Sebastião aparecer um dia de manhã envolto em nevoeiro, nevoeiro esse que não era mais que o fumo do haxixe mouro fumado durante a rave da noite anterior à batalha. Mas debalde. Sebastião ficou por Marrocos e nunca mais abafou uma palhinha sequer. E Portugal entrou em crise de forma declarada. Até hoje.

sábado, setembro 25, 2010

Sonho Seco

Era manhã. Via-se pela luz que atravessava o vidro, do meu lado esquerdo. O sol reflectia nas janelas do edifício em frente, naquela espécie de pátio interior. Era claramente manhã. Diria que no máximo dez da manhã de um dia de Primavera. O edifício em frente estava um pouco desfocado. Na verdade, aquele não era bem o sítio do costume, era a mistura desse lugar e de outro mais longínquo no tempo que tinha a mesma orientação solar. E eu estava lá, nas minhas coisas, tranquilo, e era o gajo que estava mais perto da janela, mas ainda mais longe do que era habitual estar. Ouço um cinto. Era ele, estava a baixar as calças. E era ela, a segurar-lhe na pixa, mal ele acabou de baixar as calças e os boxers. Eles estavam de perfil e assim deixaram-se ficar. Virei-me para ver, reclinado na cadeira, sabendo que havia mais gente naquele lugar, à minha direita. Mas já não consegui desviar o olhar para saber ao certo quem era. Ela estava de vestido escuro, perna cruzada sentada num pequeno banco, bem junto ao parapeito. Agarrou-lhe na pixa e começou a manuseá-la. E a manuseá-la bem. O pau crescia, crescia, crescia. Era um senhor pau. E eu para mim, “eh lá”. Era capaz de me envergonhar se lá fosse ter com ele para ela me chupar também. Eu sabia que não podia competir com um pau daqueles. Em igualdade de circunstâncias, sem nenhuma ligação afectiva, era o pau dele que iria claramente sobressair. O gajo enganava bem, parecia um tipo médio e afinal devia ter ascendência africana. E depois ela começou a chupá-lo. E a chupá-lo bem. Ela era craque, quem diria. E ele compenetrado no prazer, não emitia som, segurava-lhe de quando em vez a cabeça para ajeitar a mamada com o braço esquerdo. Estava a gostar. E ela continuava, dobrando-se e lambendo o pau. E que bem ela manejava o sexo. Eu estava sem palavras, surpreendido com aquele broche matinal. Comecei a ouvir vozes. Risos. Eram mais homens. Perguntaram, na brincadeira, “bolas, pá, tu fazes isso só a ele que acabou de chegar e não foste capaz de fazer o mesmo à gente que já cá está há tanto tempo”. E ela, muito naturalmente, como se fosse corriqueiro fazer mamadas em edifícios públicos logo pela manhã e junto à janela a um colega de trabalho, como se aquilo fosse o mais certo de se fazer numa pausa para o lanche, virou-se para mim, que era o que estava mais perto, e respondeu, “eu fazia, vocês é que nunca perguntaram”. E ela não estava a brincar. Estava séria. Acabou de dizer isto e voltou a chupar. E então o pessoal entusiasmou-se, “não seja por isso!”, ouviram-se cadeiras a arrastar-se e eu próprio endireitei-me na cadeira.

O que aconteceu a seguir não sei. Não controlo bem os meus sonhos. Acordei. Suponho que tenhamos todos formado uma fila de pixas ao léu para que ela nos chupasse a todos. Devíamos ser três ou quatro, também não mais que isso. E lá fomos fazer companhia a ele. Aquilo descambou num gang-bang. Mas isso sou eu a supor, tentando que o sonho acabasse bem.

Nem todos os sonhos têm finais felizes. Os meus raramente têm. Caem-me dentes, bato com carros que nunca soube conduzir, por vezes toco guitarra de uma forma que nunca pensei, outras vezes parto cordas miseravelmente, ando descalço à noite pela rua, percorro encostas misteriosas junto a um rio maldito talvez apenas por masoquismo, corro desesperado para apanhar o comboio certo que está sempre adiantado, passeio por caminhos junto a ruas de velhas fábricas, voo sem controlo, perco-me. Basicamente, é isto. Não é muito feliz, convenha-se. Mas também não se pode dizer que são sonhos propriamente infelizes. São sonhos inconclusivos. Andam por ali às voltas sem terem um fim certo. Às vezes caio ao chão, às vezes à água, e aí sim, podemos dizer que o sonho acabou. Mas é raro. Nos meus sonhos ando para ali às voltas. Nada faz sentido. Não tenho rumo. Não mando nada. Sei que estou num sonho, de vez em quando. Mas isso para nada me serve. Nunca atingi nada. Nunca fiz aquilo que sempre sonhei fazer em sonhos. Talvez por isso mesmo, por nunca sonhar com nada que sonhasse fazer.

As gajas feias devem saber mamar. Para compensar a sua feiura. Se Deus existe, é isto que acontece. E foi isso que aconteceu com ela. Por trás daqueles dentes tortos, olhos vesgos e pernas deformadas, esconde-se uma máquina brochista sem perdão. Tem de ser esta a ordem natural das coisas. As gajas boas são umas totós, as gajas feias mamam com uma volúpia inexcedível. Porque sabem que cada pau é uma oportunidade que tão cedo não voltarão a ter. A intermitência com que os paus passam diante delas aguça-lhes o apetite e o engenho. E dificilmente dirão que não.

A menos que sejam maçons. A maçonaria é um cancro. Se uma gaja que é feia recusa-te um broche, é porque é maçónica e só vai querer mamar noutro maçónico de hierarquia superior para subir na cadeia. Tenho medo dos maçónicos. Andam por todo o lado, controlam tudo, são os nossos chefes que se reúnem secretamente para decidir quem vai controlar o quê e vão espezinhar-te se precisarem disso. Se não és maçónico nunca podes ser realmente bom. Os maçónicos levaram-nos para a crise mas mantiveram-se fora dela. São uns grande filhos-da-puta, na minha modesta opinião não-maçónica. Os aventais e as lojas com nomes pomposos e o secretismo e o elitismo e o snobismo e essa trampa toda. Dão-me nojo. Gajas feias ligadas à maçonaria é do pior que pode haver. Nem mamam, nem deixam mamar.

A crise em Portugal é como o bacalhau. Sabemo-la apresentar de mil e uma formas: crise política, financeira, económica, social, sexual, de identidade, de valores, do sistema, de tudo o que possa imaginar; se há crise, nós temo-la, tivemo-la ou iremos ter primeiro que os outros, de uma forma indiscutível. É uma característica nossa. Só nossa. Os noruegueses comem o bacalhau sem ser demolhado e espantam-se quando as coisas vão menos bem. Mas nós temos o savoir-faire e encaramos as coisas com uma naturalidade estarrecedora. São virtudes que não se podem ensinar com uma simples receita.

Como é que ela pôde mamar tão bem no meu sonho? Como é que ela entrou no meu sonho? Com tanta gaja boa no meu subconsciente? Estou em crise. Uma crise pessoal sem explicação. Sou mesmo português.

quarta-feira, setembro 08, 2010

A Minha Terra

É claro que o lugar me traz uma certa nostalgia. Mas a minha terra, a localidade onde cresci, é feia. Nunca foi muito bonita, aliás. Podemos dizer isto friamente. Era, quanto muito, maior que as outras terras ao lado que também nada devem à beleza. E porque gostávamos de acicatar rivalidades, defendiamo-la com unhas e dentes. Sem grande razão. Era um exercício entre pobres e rotos, um duelo espúrio como tantos outros.
Hoje, demonstramos alguma pena e simpatia pela minha terra. Há quem recorde, com agrado, “no monte lá da nossa terra provém a água mais fresquinha, a melhor fruta, as melhores paisagens”. Ou “os melhores monumentos, as avenidas mais engalanadas, os melhores restaurantes”. A minha terra, porém, é um fiasco em toda a linha. Desprovida de belezas naturais. Caos arquitectónico. Lixo nas ruas. Paredes riscadas. Mármores encardidos. Mulheres sem dentes. Delinquentes que nunca mais recuperam. Carros estacionados permanentemente em segunda fila. Há uma dúzia de cafés todos na mesma rua e metade deles fecham após um mês. Mas o ciclo repetir-se-á. Velhas lojas fechadas até virem os chineses. Chineses aqui. Chineses ali. Chineses por todo o lado. E brasileiros. E indianos. E africanos. E sei lá que mais. As árvores foram abaixo. O clube desceu de divisão. As ruas à noite são mais sinistramente desertas que o cemitério. Os prédios fazem cócegas uns nos outros. Não há emprego. Já não se trabalha aqui. Quando finalmente se consegue estacionar, vai-se ver a telenovela para o maple e dorme-se. E mal, quando há desacatos e tiros nas ruas. As sirenes não param. Há alarmes a disparar a toda a hora. Ambulâncias em constante frenesim. Carros de polícia à farta. Bêbados a dormir às portas. Cartazes publicitários a taparem-nos as vistas. Muros. Pilares. Estruturas de betão no modo de reprodução automática. Alcatrão com buracos e lombas. Há tantas rotundas que um dia a estrada vista do espaço irá assemelhar-se a uma série de oitos em cadeia. Um mar de beatas de cigarros forra o passeio sujo com dejectos de cão, de homem, talvez de boi. Faz sol e a gente transpira sem sombras. Faz chuva e há inundações porque o escoamento é deficiente. E depois vendem aquele pedaço assoalhado como um pedaço de céu, mas o céu não se vê dali, só perscrutando entre os cabos eléctricos.
Pensamos que alguém há-de pensar na sustentabilidade do nosso espaço. Que também ninguém sabe ao certo o que é. Sempre foi esse o costume, projectar à toa mas a falar bem. Acreditar numa entidade superior que venha dar aquilo que já se perdeu. Ou que nunca se teve. Mas quisemos sonhar. Quando demos por nós, dizer que se vem da minha terra é quase que exibir um letreiro a dizer “sou um pobre diabo e as minhas perspectivas de vida não se comparam às vossas que vivem na Cidade”. Foi a Cidade que cresceu, fomos nós que nos deixámos aproximar, magnetizados pelo seu poder. Agora já não somos uma entidade independente, somos um agregado populacional morto-vivo. Quem não reconhece isto é porque continua a sonhar.
Bonito são aquelas casas americanas de relvado impecável e cãezinhos peludos a brincar com as crianças num dia de sol e onde até o carteiro é feliz. Devíamos ter ficado pelo videoclube. Que agora já não existe, é um local decrépito e empoeirado. E dizem-nos que isto está melhor. Quem nunca saiu de lá acredita nisso. Mas quem viu mais sabe que o máximo que fizeram foi atrasar o passo até ao estado de decadência oficial. O partido x culpa o partido y e os independentes criticam tudo. Ninguém parece satisfeito. Encolhem os ombros e dizem que podia ser pior. Podia ser pior, é um facto. Podíamos todos viver em jaulas de rato e não haver sequer um supermercado. Agora só há supermercados. E haverá sempre espaço para mais um prédio com vista para o melhor prédio, que está mesmo em cima da bomba de gasolina, mesmo perto dos transportes públicos envelhecidos, sujos e mal-frequentados. As faces antigas perdem a cor e morrem, as faces novas nada nos dizem. É claro que esta é a lei da vida. A minha terra, essa, nunca pôde ser bonita. Não tinha condições para tal. E a pouca identidade que tinha escoou-se pelo cano. Era apenas a nossa inocência que nos fazia crer que aquilo era do melhor que havia.

quinta-feira, agosto 12, 2010

Sobre Uma Rapariga

Larissa acordou e despiu-se. Isto é, tirou a cuequinha de renda que lhe incomodara de sobremaneira o sono. Agora já estava mais à vontade. Livre. Esbelta, com os seus trinta quilos de silicone e uma arroba de botox. Foi ao Photoshop retocar-se e saiu para dar uma volta. Toda a gente olhava para ela e Larissa ficou apavorada. “Queres ver que me esqueci de tirar uma peça de roupa”? Mas não. Estava tudo normal. Os bicos da mama já estavam quase a rebentar com uma montra e ela desceu a mão até ao seu grelo rapado para se certificar que tudo estava como devia ser. Ou seja, nu. E estava. Seria o quê, então? Os sapatos, que estariam a tapar os tornozelos? Então descalçou-se. Sentiu-se mais livre. Mas as pessoas continuavam a olhar, os homens babavam-se, as mulheres desviavam-se para não serem atingidas pelas suas majestosas mamas – que já asfixiaram javalis adultos e abriram 50 cervejas de seguida sem um único arranhão –, as crianças pediam leite e as mamãs diziam “aquilo não dá o leite que vocês querem, só recebe o leite que vos fez”. E as crianças ficaram na dúvida, pelo menos até aos 12 anos. Larissa sorria e tentava perceber o que ia errado. “Parece que nunca viram ninguém despido”. Seria do sinal na cara? Devia ser o sinal na cara. Na televisão as pessoas nem notam, mas ao vivo é tramado. Aquele sinalzinho irritante parecia uma poeirazinha naquele universo curvilíneo de carne e plástico, mas sobressaía indecentemente e sem piedade. Larissa tinha a certeza que só podia ser aquele maldito sinal e ficou triste. Toda a gente com os olhos postos nela, só para criticar o seu inestético e horripilante sinalzinho. E então despiu-se, como protesto. Mas já estava nua e descalça. Então cortou um bocadinho o cabelo, para se sentir mais à vontade. E sentiu-se mais livre. Mas as pessoas continuavam a olhá-la.
O desconforto provocado por Larissa nas outras pessoas despertou-lhes reacções estranhas. As mulheres, enquanto a contemplavam com um misto de estupefacção, repulsa e inveja, eram atravessadas por pensamentos impuros. Que iam do “esta gaja mete nojo com o seu corpo pré-fabricado”, passando pelo “eu matava esta gaja só para acabar com as manias dela”, fazendo um desvio pelo “eu também podia ser assim, mas não quero” e acabando no “ela pode ter um grande par de mamas mas eu tenho uma mala melhor que a dela”. Os homens, vencidos e com uma enorme inércia físico-mental, pararam o que estavam a fazer. Mesmo aqueles que não faziam nada deixaram de o fazer para serem colhidos pela surpresa. Os seus cérebros bloquearam. Tudo deixou de fazer sentido, tudo convergiu para aquele corpo plastificado que atraía como um poderoso íman. Bocas escancaradas, olhos bem abertos, um fluxo de sangue a ferver pelo corpo. Paralisados, com um sorriso parvo, declararam logo rendição incondicional. O que enfureceu ainda mais as mulheres e as fez arrepender de alguma vez terem proferido a frase “o meu Felismino? O meu Felismino não é igual aos outros”. Ah pois não. E se as crianças estavam confusas com as reacções dos adultos, os gays estavam claramente indignados com a enorme demonstração de liberdade da Larissa: é que ela nem precisou de uma parada folclórica para se mostrar. Porém, como ficava mal criticá-la por fazer aquilo que eles sempre sonharam fazer e só não faziam porque não tinham tomates para fazê-lo, remoeram em silêncio a atitude desprendida de Larissa.
Pressentindo que a sua presença era demasiado incomodativa, Larissa decidiu ir para outro sítio. Foi para a praia. Mas não para uma praia de nudistas. “Não me sinto à vontade”, confessou. Mas não que achasse mal; aliás, ela já se tinha despido. De preconceitos. Há muito tempo. “Não sei, parece que há sempre um ou outro exibicionista pelo meio que estraga o ambiente numa praia de nudistas”. E na praia sem ser de nudistas ela sentiu-se mais confortável. Já nem toda a gente lhe olhava da mesma forma, habituada ao costumeiro topless aqui e ali. Ao fim de algum tempo, e após ter rechaçado um engraçadinho que queria jogar à bola com uma das suas mamas (“Vá lá, a minha bola foi para o mar… E tu também podes vir jogar, se quiseres…”), Larissa sentiu-se mesmo feliz. E então resolveu despir-se para comemorar. Mas ela já não tinha nada para despir. Como tal, ficou triste outra vez. Deprimida, vagou solitária no caminho até casa, cabisbaixa, insegura, até que descobriu uma loja de roupa. Em promoção.
Larissa adorava roupa. Embora não parecesse. Gostava de grandes casacos de pele. Sabiam melhor quando se despia, por serem mais pesados. E tinha um guarda-roupa impecável. A roupa nunca se estragava nas mãos dela. Aquilo era para usar uma vez e guardar como espécie de registo histórico. “Aquela blusa”, comentou, “vestia-a em Agosto de 2008. Depois despi-a e nunca mais voltei a vesti-la”. Tinha custado duzentos e tal euros. Era já uma peça de colecção procurada pelos seus fãs, como, aliás, todo o seu guarda-roupa. Especialmente os soutiens. Eram mais de mil, cada um adaptado à forma das suas mamas ao longo do tempo. Ela começou no tamanho 28, tinha ela 7 ou 8 aninhos, e já ia no 74. Mas como o silicone pode deprimir-se consoante a pressão atmosférica e a forma como ela dorme, por vezes veste do tamanho 40 ao 56 na mesma semana. “Na semana passada, comecei com um 56”, exemplificou, “mas depois de me ter entalado numa porta na 5ª feira, tive que mudar para dois 40, porque as mamas ficaram temporariamente mais pequenas e mais verticais. Mas apliquei-lhes um sifão na 6ª feira e depois regressei ao 52”. Agora, comprou outro soutien e umas cuequinhas, só para se proteger do ar-condicionado. E depois foi para a rua despir-se. Desta vez, num acto puramente hedonista. Ela já se tinha despido para protestar, para celebrar, para incentivar e até para matar – houve um tipo que morreu afogado, e feliz, no seu peito, ao que dizem foi suicídio premeditado. Mas desta vez estava a despir-se só porque sim. Porque lhe apetecia. E quando o fez sentiu-se muito livre. Como um passarinho. Ou como a sua passarinha, que respira ar puro muito melhor que certos narizes.
Depois Larissa foi comer qualquer coisinha. Um ramo de salsa, meia cereja e um sumo de alperce. Depilou-se na paragem dos táxis, que ela notou dois ou três pêlos a florir junto ao seu fértil clitóris, que se assemelhava a um berbigão gigante insuflado de botox. Era ver os taxistas a atropelarem-se uns aos outros para conseguirem ficar com aquela cliente. O mais esperto dos taxistas, uma espécie de divindade local, ganhou expectavelmente o concurso. Tentou fazer conversa com ela, enquanto ajeitava o retrovisor. Era notório um brilho nos olhos e a costumeira desatenção no trânsito aumentou significativamente; não houve vermelho que fosse respeitado e a regra da prioridade foi completamente subvertida. Como quase sempre. Mas era Larissa que estava no banco de trás, maquilhando-se com batons e pozinhos e espalhando creme anti-ferrugem nas mamas. Pelo sim pelo não. O taxista quis arrancar-lhe umas palavrazinhas. “Então, já viu este tempo”? Mas a conversa não era o forte dela. “Então, e o nosso Benfica”? Mas o futebol não era o forte dela. “Então e viu os ladrões do nosso Governo”? Mas a política não era o forte dela. “Então e aqueles tipos do programa da dança, hã? Aquilo é que é entretenimento”! E ela lá reagiu com uma risadazita parva, que coisas parvas já eram mais o seu forte. Em abono da verdade, os únicos pontos fortes da Larissa eram os seus bicos da mama e o ponto G; tudo o resto era de uma mediocridade exasperante. Mas isso nunca a impediu de ser popular. A meio da viagem, Larissa sentiu-se agoniada. Aquele sumo de alperce tinha sido demais, ela não estava habituada a ingerir quantidades de líquidos tão elevadas que não sémen. Soltou um arroto brutal. O táxi tremeu, mas o pior foi a sua mama. Não resistiu às ondas de choque e rebentou. A mama explodiu e largou uma poia de silicone bem em cima do assento. O taxista ficou pior que o seu banco, que estava estragado. E Larissa também ficou muito desconsolada.
Foi para casa chorar em posição fetal, lacrimejando agarrada aos restos da sua mama e acariciando a sua outra mama, protegendo-a de possíveis agressões externas. Apetecia-lhe despir-se, numa perspectiva de fazer as pazes consigo mesma, mas não estava em condições de se ver ao espelho. Então lembrou-se que tinha uma Jabulani que tinha trazido do Mundial da África do Sul. Procurou o pipo da bola, puxou-o para fora e introduziu a bola no buraco deixado pela sua mama desaparecida. Estava ali um belo substituto. Já podia despir-se outra vez à vontade. Para se sentir livre. E seria o que tinha feito, se não estivesse já nua. Então lembrou-se que ainda tinha maquilhagem. Despiu-se de maquilhagem. Ficou feliz. Foi vestir um soutien para tomar banho, que a água pode misturar-se com o botox e inchar e depois ela ficava tipo boneco da Michelin, como aconteceu no Natal de há dois anos, em que o pai dela ia mordendo-lhe os seios, pensando que aquilo era o peru. Mas apareceu um tipo do Círculo de Leitores e ela foi atendê-lo. Como homem que era, o tipo do Círculo de Leitores engasgou-se e foi incapaz de traduzir por palavras as recomendações do mês, apontando para fascículos de História ao calhas. Larissa não percebeu e não ia comprar nada, que ela não era dessas coisas de ler e pensar e fazer continhas com pauzinhos e bolinhas, mas percebia como poucos de cremes faciais. Para não deixar triste o tipo do Círculo de Leitores, julgou que seria uma boa forma de animá-lo se se despisse. E toca de sacar as mamas cá para fora. O bico da mama ainda boa acertou-lhe como uma bala nos olhos. E ele desmaiou. Ela riu-se e fechou a porta, concluindo que o desmaio era o derradeiro sinal de satisfação.
Já deitada no seu leito, com uma tanguinha para que nenhuma migalha perdida nos lençóis entrasse sem pedir licença em sítios impróprios, Larissa sentiu o sumo de alperce ainda a remoer-lhe no estômago. As tripas, que, como o resto do corpo, estavam debruadas a silicone, começaram a grunhir. O gás a subir. E Larissa mandou um arroto que se ouviu no fim da rua. Resultado: furaram-se-lhe as nádegas. Três buracos assim de uma assentada no seu traseiro. Ela ficou triste. E então despiu-se. Sentiu-se mais livre. Mas amanhã teria de voltar ao médico dos implantes e plásticas. E rezar para que não fizesse muito calor, senão ainda derreteria como um sorvete ao sol a caminho do consultório.

terça-feira, agosto 03, 2010

O Sinal da Besta

[António está sentado numa cadeira giratória com a largura de uma pista de aeroporto. Na mesa à sua frente repousam vários CDs, LPs, uma caveira, algumas correntes e papéis soltos. Nas paredes à sua volta estão afixados posters e bandeiras com gajos vestidos de preto envergando camisolas de outras bandas e ostentando grandes cabeleiras. Behemoth, Sacred Sin, Metallica (anos 80, ainda com o Cliff Burton), Queensryche, Entombed, Celtic Frost, vampiros, enfim, não se consegue ver a cor da parede. Chega o Nuno.]
Nuno (N) – Então, pá?
[Trocam um cumprimento com os punhos direitos a encaixarem um no outro enquanto desviam o cabelo com as mãos esquerdas.]
António (A) – Tudo em cima?
[Nuno faz o sinal da besta, ou aquele gesto dos corninhos com a mão. Ensaia um headbanging.]
N – Metal up your ass!
[António mostra um ar de enfado enquanto demora 15 segundos a rodar 45º com a sua cadeira, sentindo-se o chão a estremecer.]
A – Meu, tu és tão estereotipado...
[Nuno fica surpreendido como se visse os Manowar no Pine Cliffs da Quinta do Lago a tocar para 200 vips.]
N – Qual é, meu? ‘Tás stressado com alguma cena?
A – Eh pá, não, pá. ‘Tou aqui a pensar numa cena.
N – Que cena, meu?
A – Pá, tu ‘tás a ver a teclista dos Eternal Suicide?
N – Então não? A gaja que já ‘teve nos Gorefiction?
A – ‘Tás a pensar na Kristina Stuvenslud, não é?
N – Stuv quê?
A – Não ‘tás a pensar nessa?
N – Não, pá. Quer dizer, acho que não. Uma gaja loura com uma tattoo de um pentagrama no antebraço esquerdo, não é?
A – Meu, essa é a Frida Hertzbaum dos Motherkill.
N – Ah pois é. Não faças caso. Mas a teclista dos Eternal Suicide já tocou nos Gorefiction, não já?
A – ‘Tás a falar da Kristina Stuvenslud, não é?
N – Pá… acho que sim…
A – Sim, ela foi a teclista dos Gorefiction, mas já saiu dos Eternal Suicide há 3 anos, depois daquele EP lançado em conjunto com os Mastodont Pain para aquela label independente sueca, a Distasteful Records.
N – Quê? O “Beastfest”? Aquele que tem a faixa de 10 minutos que foi o grande êxito underground da Finlândia do Verão de 2007, o “Nightwish for Blood”?
A – A faixa tem 10:59, pelo que tecnicamente é uma faixa com 11 minutos. E o “Nightwish for Blood” foi um relativo sucesso, na senda dos trabalhos mais convencionais que já tínhamos presenciado em “Carnage Birthday”, o seu debute de 1998. Mas o melhor foi o B-Side do single “Christmas Overkill”, o épico “Unecessary Slaughter”, que abriu novos caminhos para o speed-gore-symphonic-metal.
N – ‘Pera aí… mas os gajos não lançaram uma compilação com B-Sides há pouco tempo, o “Undercover from Hell”? Não me lembro de ver lá o “Unecessary Slaughter”…
A – Era uma faixa escondida.
N – Ah…
A – A seguir ao “Pretending You’re Jesus”. Havia um silêncio de 2 minutos, depois uma leitura satânica em reverse durante 30 segundos e começava o “Unecessary Slaughter”.
N – Ah… Pois, está bem. Eu sempre gostei mais do “Christmas Overkill”. Curtes os B-Sides deles? Eu nem estava certo que eles tivessem lançado B-Sides…
A – Meu, não vamos começar a discutir B-Sides, pois não? Lembras-te daquela aposta que eu fiz contigo sobre o primeiro B-Side oficial dos Molesting God?
[Nuno nem se quer lembrar disso, sacode o cabelo para trás e mete as mãos nas ancas, mesmo por cima da corrente.]
N – Iá, iá, em que eu tive que ouvir o CD dos Creed a altos berros enquanto passava de carro com vidros abertos junto ao Hard Rock Café e depois tive que entrar lá dentro de tronco nu e gritar “can you take me higher?” e a tocar em air guitar o riff logo a seguir – que era “tan-dan-dan-dandradan” – até que os gajos me metessem fora dali? Sim, foi um momento infeliz… nunca mais me meti em apostas…
A – Pá, tu é que quiseste começar a falar de B-Sides… Eu ‘tava aqui na minha e tu começaste com cenas sobre os Molesting God, a dizer que os tipos eram a next big thing de Leipzig e que tinham aparecido logo com um álbum arrasador do ar, que nem demo tape tinham nem nada, e eu “’tás-te a esquecer do primeiro single deles lançado por uma label sediada em Magdeburgo que tinha um B-Side que iria marcar toda a sua carreira dali em diante” e tu “ah, ‘tás a ler” e eu tumba, vai uma aposta? E pronto, assim que te mostrei um LP que comprei numa feira metal-underground de Salzburgo e meti as liners notes à tua frente ficámos todos esclarecidos. Pá, a culpa foi toda tua.
N – Vá, mas continuando, a teclista dos Eternal Suicide…
A – Mas ‘tás a ver bem quem ela é, não é? Não é a Kristina Stuvenslud, que essa já saiu e agora está nos Martirium Horrendus. E a fazer uma bela bosta de álbum.
N – Como sabes?
[António sacode o cabelo para trás, inspira fundo e revela o seu orgulho.]
A – Pá, tive acesso à demo deles, através do meu amigo Jonas Olafsson dos Vampyryah. Sabes como é, eu ‘tou dentro da cena e conheço uns tipos e tal e talvez um dia lance o meu próprio projecto de lírica onírico-gótica, mas adiante… Meu, os tipos agora estão a fazer um crossover entre o sludgemetal e o neo-gótico e aquilo não se parece. A Kristina está perdida no meio daquilo tudo. Os Martirium Horrendus nunca mais foram os mesmos desde que o vocalista saiu para ir trabalhar para uma cadeia de supermercados na Lapónia. Longe vão os tempos dessa grande malha que era o “Ask Me To Die”, de 1995, e que chegou a entrar numa colectânea promovida pela revista francesa, entretanto descontinuada, que era “Le Sphinx”.
[Nuno entusiasma-se.]N – G’anda som, pá! Aquele baixo sempre a dar, aqueles breaks de bateria,… man!... Tipo, como é que era? [Faz voz cavernosa e cara de fúria.] “Digest my pain, the beast runs you dry, it’s driving you insane,…”
[António entusiasma-se. Abana a cabeça e o chão treme. Demora alguns segundos a levantar os braços e a fazer o sinal da besta. Faz voz cavernosa.]
A – “… Now ask me to diiiiiiiiiiiiiieeeeeeeeeee!... Slow in pain!...”
N – Yeah!, ganda som, ganda clip, quando os tipos passam pelo matadouro e começam a contemplar as cabeças de gado decepadas…
A - … iá, iá, e depois passam umas imagens de pessoal a rezar numa igreja do sul dos EUA com os Martirium Horrendus na assistência…
N - … e depois os tipos começam a ficar possuídos e aparece uma boazona de cabedal e arranca-lhes os corações e vai-se a ver e o padre afinal era Lucifer e as velhas começam todas a gritar e a saírem-lhe pequenos elfos pela boca… pá, brutal!
[António pára. Fica a olhar para Nuno com uma expressão mista de incredulidade e reprovação.]A – Meu, não eram elfos. Eram as imagens das próprias pessoas cobertas com lama e musgo a saírem delas mesmas. Era uma crítica deveras profunda ao extremismo religioso.
N – Ah era?
A – Era.
N – Pá, pareciam elfos.
A – Mas não eram. Achas que os Martirium Horrendus iriam entrar por esses caminhos de espectacularidade mórbida gratuita?
N – Pá, parecia mesmo… Desculpa lá, não ficava mal…
[António quase que tem um enfarte. Responde com um tom de voz mais alto e esbugalha os olhos, como se fosse para possuir Nuno. Só a mente, não o corpo. Até porque se quisesse possuir o corpo de Nuno teria de se mexer, o Nuno iria perceber e podia fugir durante os cerca de cinco minutos que levam ao António processar a informação que chega do seu cérebro aos seus membros e proceder ao ataque físico ao Nuno.]
A – NÃO FICAVA M… meu, meu, meu, qual é a tua, pá?!? Que é ‘tás para aí a dizer? NÃO TEM NADA A VER, OK? Fosga-se, qualquer dia ‘tas a dizer que Nostradamus Erectus é folk-progressive-grindcore-metal, não?
N – Bolas, ó António, qual é a tua, pá? ‘Tava na boa… Para dizer a verdade, nem os conheço muito bem, só vi umas cenas deles no YouTube…
A – Pois é, Nuno, pois é… a tua cena é que não conheces bem as cenas e depois dizes cenas que… eh pá, nem vou qualificar, meu. Fica só entre nós que é para não te envergonhar.
[Nuno descai o cabelo como um cãozinho coloca o rabo entre as pernas.]

N – Pronto, desculpa lá, pá. Mas ias tu a dizer…
A – Pá, a teclista dos Eternal Suicide. A nova. A Olga Ruhr. ‘Tás a vê-la?
N – A Olga Ruhr? A que foi baixista das Witch Kraft?
A – Ooooora bem! [António sente um alívio e exala com satisfação, afastando assim metade dos papéis em cima da mesa, tal a força do seu suspiro.] Essa mesmo. Agora é teclista dos Eternal Suicide.
N – Mas ela não era extremamente limitada? Ouvi dizer que as Witch Kraft ‘tão bem melhor sem ela… E agora é teclista nos Eternal Suicide?
A – Não era nada limitada…
N – Então não era?
A – Não era nada…
N – Era, pois!
A – Ela esteve a aprender música entretanto…
N – Oh António, pá, até tivemos discussões de meia-noite por causa do som do baixo das Witch Kraft, contigo a dizer que até os Doors tinham um melhor baixo que elas…
A – Ih, olha lá, eu nunca me referi às Witch Kraft nesses termos tão comerciais… Quanto muito comparei-as aos Sarcastic Gallows…
N – A quem?
A – Aos Sarcastic Gallows. Aqueles das grandes malhas retro-death-hardcore… Que fizeram a “Schwaintreprock”, “Missiúgótago” e “Éniueideuindeblous”…
N – Hã?
A – “Éniueideuindeblous”.
N – Não percebi…
A – Não é para perceber. Eu falo muito junto do microfone, monocordicamente e rápido que é para ninguém perceber as minhas calinadas em inglês. E como digo muita coisa as pessoas pensam que eu sou um grande cromo.
[António inicia um breve momento de silêncio envergonhado. Nuno percebe e acompanha-o num respeitoso silêncio para evitar mais embaraços.]
A – Pronto, agora é que ‘tás mesmo a ver a Olga Ruhr, não estás?
N – Sim, a ex-baixista das Witch Kraft que não tocava nada e agora é teclista nos Eternal Suicide… Que é que tem?
A – Pá, não vais acreditar, mas…
N – Sim?…
[António dobra-se para contar um segredo ao Nuno. Passam-se 45 segundos de grande expectativa para Nuno. António segreda.]
A - … acho que vi a irmã dela quando vinha para aqui.
N – A… a irmã… a irmã da Olga Ruhr que foi baixista nas Witch Kraft e agora é teclista nos Eternal Suicide?
A – A irmã dela. Em carne e osso.
N – E… como é que sabes que ela era?
A – Bolas, eu conheço toda a vida da Olga Ruhr. Das fotos que vi numa promo shot e da reportagem do seu baptizado em 1987, tenho quase a certeza que era a irmã dela, a Vanessa Ruhr, que andava por cá a tirar Direito na Lusófona.
N – Como podes estar tão certo disso? A família dela é toda da Polónia…
A – Não é bem assim; têm uns primos na Alemanha e há um cunhado dela que é guitarrista nos Tormentt, que são checos. Apenas fiquei com algumas dúvidas porque ela não estava a ir a caminho da Lusófona.
N – Pá… e então?
[António nem quer acreditar na indiferença de Nuno.]
A – ENTÃO?... Fosga-se, a gaja é linda. Pá, aquele corpinho esguio, cabelo vermelho escorrido até ao rabo, vestida de preto, botas com saltos de 20 cm, cinto de cabedal com espetos de metal, lábios carmim, pele cor de leite, um sinalzinho junto ao nariz, olhos claros pintados de roxo, tatuagem do diabo junto ao ombro, capa à vampira e a ler uma revista com uma reportagem dos Holocausto Canibal. Ainda por cima, acho que ela estava a cuspir sangue por causa de uma infecção lixada nos pulmões que lhe fez perder os dentes todos e inchar-lhe as gengivas, mas eu passei por cima disso tudo. Pá, fiquei apanhadinho. Pensei em zarpar com ela logo ali para a Serra de Sintra e sacrificarmos uns animais, ou cortarmo-nos carinhosamente aos dois com uma faca de gume afiado numa matiné de Domingo a ouvirmos Abhorrent Religion, ou torná-la na baixista da minha banda, que banda que se preze tem uma gaja boa a tocar baixo. Isto se eu soubesse tocar alguma coisa, claro. Mas pensei em muitas coisas bonitas desse género. Pá, senti um chamamento interior mais forte do que quando me despi para ir à sessão de autógrafos dos Leechmind e meti o pessoal todo a vomitar.
[Nuno passou o tempo todo a curtir o estilo dos Wicked Erection of Jesus num poster que estava atrás de si, mas sentiu que tinha de continuar a conversa.]
N – E o que queres fazer?
A – Pá… eu queria convidá-la para sair… mas acho que não faço o estilo dela. Acho que preciso de fazer exercício, perder uns quilinhos, que achas?
N – Olha, já foste a um spa?
A – Não… o que é isso?
N – Pá, é uma cena para o relaxamento, ‘tás a ver?
A – Tipo uma balada dos Satanic Peephole?
N – Não, ainda mais calma… tipo Mr. Stampede em 1990, mas a 33 rotações…
A – Ena pá, ‘tou a ver… tipo, cena calmíssima mesmo, bué da melancólico, iá, ‘tou a ver…
N – Pá, vais lá, há pessoal que te mete cenas nos olhos, pepinos e isso, trata-te da pele, das unhas, vais tomar um banhinho, fazes um iogazito se conseguires, põem-te umas pedrinhas nas costas, alinhadas ao longo da tua coluna vertebral…
A – Pedrinhas nas costas? Essa cena resulta?
N – Ouve, o Dave Mustaine é doido por pedrinhas nas costas… dizem que aquela cena é uma técnica chinesa boa para caraças…
A – O Dave Mustaine mete pedras nas costas?
N – Então, meu, não sabias? O gajo é alto fã de spas e podes constatar essa influência ao longo do último álbum…
A – Eh pá, pois, não ando a dar muita atenção ao Dave Mustaine… Nem parece meu…
N – Pois é, pá, pois é… tens de alinhar nessa cena… senão estás lixado… a Vanessa Ruhr vai cagar para ti.
A – Eh pá, não sei… e achas que isso do spa pode resultar?
N – Na boa, pá, na boa… os tipos têm programas para gajos que vão dos 9 aos 90 anos, sejam eles magros, gordos ou morbidamente obesos. Ou elefantes malfeitos, como tu.
A – Vou pensar nisso, pá, vou pensar nisso…
[António demora 30 segundos a virar-se e começa a desenhar um plano de acção. Iria inscrever-se num spa, “preferencialmente junto ao Parque das Nações”, disse-lhe o Nuno, “é lá que andam todos os meus amigos e até o vocalista dos Tarântula já foi visto por lá num programa de massagens tailandesas para se compatibilizar com o seu eu interior”, e, num prazo máximo de 3 meses, sentir-se-á revigorado, com menos 120 quilos e perfeitamente capaz de abordar Vanessa Ruhr na rua. Depois de a conhecer, iriam ver um concerto dos Death On Arrival à Incrível Almadense, celebrariam o seu namoro com um mosh apocalíptico e iria com ela para a Polónia, onde António ganharia um free-pass vitalício para o backstage dos Eternal Suicide e arrancaria um autógrafo da sua irmã Olga Ruhr só para se armar junto do Nuno, porque António crê que a gaja não toca mesmo nada e só está na banda por não se fartar de mostrar as mamas durante os concertos. Só uma coisa parecia perturbar António neste caminho inexorável até ao sucesso.]

A – Pá, e lá no spa é possível trocar as flautas e os sons da natureza pelo primeiro álbum dos Heaven’s Brothel?
N – Talvez, pá, talvez. Mas tens de levar tu o álbum e se calhar tens de pagar a reprodução do CD como um extra.
A – Bacano, pá! Não há problema nenhum! Let’s rock!
[Nuno sente que António está entusiasmado. Compartilha com ele o gesto da besta e assume a posição de quem vai tocar air guitar, afastando as pernas e agitando a cabeça para cima e para baixo.]
N – Whoooa!!! Metaaaaaaaaaaal!!!!!!!!!!!

quinta-feira, julho 29, 2010

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Ora bem, estou aborrecido. Atingi aquele estado de paralisação mental decorrente da falta de actividade física e mental que muitos designam de “letargia”. Mas isso tem uma sonoridade demasiado patológica. Aquilo que eu sinto está mais próximo de “preguiça”. Ou “abrutalhamento”. Se fosse noite, ia dormir. Se estivesse em casa, ia ver pornografia. Ou melhor, ia sentir a pornografia da forma que só eu sei. Porém, aqui não posso. Estou bloqueado. Talvez seja uma boa ideia. Aqui também não poderia apreciar a pornografia da forma adequada. Há muita gente a ver. Quase que aposto que iriam dizer “eh pá, tu gostas dessas gajas”? Ou “tens uma maneira esquisita de agasalhares o macho”. Ou “devias ter trazido mais papel higiénico”. Ou simplesmente “não tens vergonha de sacares do teu mangalho enquanto nós estamos no coffee-break”? Não iria ser o mesmo. Até porque há mais gente ao lado e a intimidade é uma coisa que valorizo. Sim, prefiro ser bloqueado de aceder a pornografia quando não estou em casa. Não é a mesma coisa. É melhor guardarmos a pornografia para quando pudermos usufruir dela na sua plenitude. Como se fosse uma garrafa de vinho velho que nós guardamos durante anos e anos, apenas para nós constatarmos que quando a abrimos por ocasião da visita dos nossos amigos a viver no estrangeiro o vinho já está azedo dos fragmentos de cortiça apodrecidos que caíram em cima do conteúdo. E os nossos amigos nem bebiam álcool. Lamentável. Tanta precaução para nada. Nem boa impressão conseguimos causar.
Devemos guardar as coisas certas para os momentos certos. Se bem que pornografia calha sempre bem, desde que já tenha passado meia-hora depois da última ejaculação. Com 15 anos só precisava de esperar 5 minutos e bastavam-me imagens mentais. Mas a idade é tramada. As coisas vão-se alterando. Percebi isso quando houve uma preta que ganhou o concurso de Miss Escola na minha C+S, que agora é 2+3 e qualquer dia é só =5 ou qualquer coisa do género. A única coisa boa que a gaja tinha era ser magra. Fazia bem ginástica. Mas depois era vesga, ou lá o que era aquilo, tinha um olho mais fechado que o outro. Nem sequer tinha a dentição perfeita que as guineenses costumam ter. Tinha totós às cores na cabeça. Chamava-se N’Qualquer-Coisa, o que é logo um balde de água fria para quem quer ver misses e só lhe vem à cabeça N’Dinga, ou N’Kono, ou o resto da Selecção dos Camarões, ou o tipo que fez “Os Deuses Devem Estar Loucos”. Não fazia, decididamente, o meu género. Mas ganhou com alto avanço. Devia ter constatado que aquele era um ponto de não-retorno na evolução da sociedade. Adeus às Marés Vivas. O rock morreu. Já não se podem contar piadas racistas ou escrever slogans como “Morte à Chuva”. Nada disso. O paradigma mudara abruptamente e eu, na minha feliz ignorância, ainda pensei que aquilo fosse um prank-joke, “ah, ninguém vai dizer que aquela coisa é a melhor gaja da escola e não considerar sequer a S. que é girinha e tudo, apesar dos broches todos que ela faz ao pessoal ali do cantinho”. Mas era a verdade. Nua e crua, como eu nunca quis ver a Miss Escola desse ano. A N’Qualquer-Coisa era formalmente a miúda mais respeitável desta escola. Candidatou-se, sabe-se lá mandatada por quem, e venceu democraticamente aquele fantochada de eleição. Assim eu acredito. O que queria significar que 1) a nossa escola estava secretamente dominada por uma minoria que se calhar era bem maior do que esperávamos e que votou em massa na sua amiga ou 2) quem votou pensou estar a votar noutra pessoa, o que era francamente possível dadas as péssimas notas a português e o avolumar de gente que lia sílaba a sílaba, em voz alta e com o indicador a percorrer as linhas de texto, mesmo do 10º ano para cima 3) o meu gosto era incrivelmente superior ao dos outros todos. E, por inerência, toda a minha pornografia.
O certo é que ela ganhou e voltou a ganhar no ano seguinte. Conformei-me com a ideia de que ela é que seria sempre a imagem feminina da nossa escola e procurei dissociar-me do status quo. Fiquei com a minha imagem de ideal feminino e eles que ficassem com aquilo. No fundo, o mundo estava errado e eu estava certo, mas eles eram muitos e alguns armados e eu era um, tímido e com um espírito de liderança semelhante ao do João Moutinho – queria era sair dali. E ir para casa, ver pornografia.
Sucedi neste propósito. Vi muita pornografia. Especialmente da boa. A má pornografia também existe. Dizer que isso é mito é mentira. A má pornografia é, basicamente, aquela que não conseguimos ver. Mas também pode ser um vídeo ranhoso em que nem se percebe quem é que está a praticar coito com o quê. Ou aquelas vacas americanas que gemem por tudo e por nada e se fartam de dizer de coisas tão improváveis durante o acto. Vi uma pornografia de um suposto incesto entre mãe e filho e achei aquilo dos melhores pedaços de comédia de sempre. Por respeito e por falta de memória nem vou reproduzir. Não gosto dessas gajas nem dessa pornografia. Ainda por cima, elas estão geralmente carregadas de tatuagens e silicone. Está um gajo a enterrar-lhes e elas “Do you wanna fuck my ass? Yeah?! Oh yeah, go ahead, fuck my ass, big boy. It’s time to take a chance. I’ve never given my ass before, but you make me wanna try it with your big, stiff cock [aquilo é tanta treta que um gajo captou logo que ela levava na peida só pelo diâmetro do cu dela em repouso, que era quase semelhante ao buraco de qualquer sanita normal] Wanna fuck my ass? Yeah? Yeah? Oh!... So good! Yeah! Fuck my ass, baby. And I want you to come over me and I wanna swallow your cum and taste it real good and then you can slap my face and call me dirty names. I’m your bitch, boy! Yeah, yeah, gimme all you have, yeah, so good, yeah, I feel it all inside, cum, baby, cum! Yeah, yeah, yeah!!!”… e podia estar aqui horas e horas, aquilo é sempre o mesmo. Soa tão forçado que me faz perder a vontade. E então vou para filmes de leste. Elas são melhores, parecem menos vacas e não percebo o que dizem. É só vantagens.
Agora de repente, já me sinto menos aborrecido. Já passou algum tempo, que era aquilo que pretendia. Daqui a pouco saio daqui… e não, não deverei ver pornografia. Parecendo que não, há outras coisas importantes para fazer. Como jogar Football Manager. Ouvir música. Até comer. Entretanto, produzi uma literatura de tão baixo nível que este é um texto que não recomendo nem a mim mesmo. Bolas, desci mesmo baixo. Há dias, semanas, meses, anos assim. Um dia voltarei a uma forma razoável. Não tão má, pronto. Assim espero.

terça-feira, julho 27, 2010

Carlitos

O Carlitos toca com os dinossauros do rock, porém não é bem da cena rock. É da cena “’tá-se bem”. É o gajo que se vai aguentando ao longo dos tempos. É o gajo que a gente pensa, “se ele não está ali com o resto da banda é porque teve de ir fazer um xixi. Ele volta não tarda nada”. Ele esteve sempre lá. Mas a banda não é dele. É do Miguel e do Kinas. Eles é que sabem o que há para fazer, como se há-de fazer, quando vai ser feito. O Carlitos faz aquilo que é preciso ser feito. E é só. Sem grandes ondas. Nem precisa de abrir a boca. Não precisa de ir às conferências de imprensa. Pode ir escolher fatos nesse momento. Ele pode parecer velho e cortar o cabelo como se fosse um tipo velho e sem cabelo, como todos os outros tipos da idade dele. O Miguel e o Kinas não. Ou melhor, o Kinas pode; quanto mais rebentado, melhor. O sonho do Kinas é chegar ao 80 anos e parecer jurássico. O Kinas saberá que o seu tempo estará a chegar perto do fim quando tiver uma ressaca que não passe nem com 50 Guronsans. Porque até agora nenhuma foi demasiado forte. Demasiado feia. Demasiado fria. Todas as suas indulgências com substâncias ilegais, ou não, foram pequenos Martinis que foi tomando antes, durante e depois dos espectáculos. Um risco aqui, um chuto ali, uma passa acolá. Um rodízio de drogas, um festival de tapas alucinogénicas onde cabe sempre mais uma. O Miguel saltava e abanava-se como uma mulherzinha estridente. Tinha uma boca que só mesmo ele a poderia tornar num sex-symbol. Noutra pessoa qualquer seria um defeito Manuela-Moura-Guedesco. Tinha um cu apertado em calças de lycra ou cabedal que faziam as Scissors Sisters virem-se a seco mal o vissem a gingar no palco. O Miguel há-de chegar à idade do Manoel de Oliveira e pensar que está na puberdade. O Miguel nunca teve sequer uma pequena barriguita de cerveja para amostra. O tipo continua com a mesma elegância e o mesmo cabelo de há 40 anos. O Miguel é tramado. E o Kinas também. Por serem tão tramados é que a banda é deles. E de mais ninguém. O Carlitos é o sidekick de eleição. E ele está bem assim. Ele pode fazer cara de frete. E faz muitas, especialmente quando está mais gente a ver. Será mesmo uma cara de frete genuína e ninguém o levará a mal. “Ah, é porque ele é tímido mas é um grande profissional e o pessoal curte-o bué”. Se o Miguel ou o Kinas fizerem cara de frete é porque algo está podre e logo se fala na separação ou em parar o espectáculo antes que eles se aborreçam a sério. O Carlitos pode apanhar grandes mocas e fazer cara de “ena pá, ‘tou mêm’ c’uma ganda moca!” porque ele, na verdade, está mesmo a tripar com ácidos. Mas o Miguel e o Kinas estão sempre no seu estado normal. Eles nunca estiveram mais ou menos malucos. Eles são malucos e é assim que devemos aceitar a ordem das coisas.
Mas nem tudo é mau no Carlitos. Ele tem aquela imagem de ser um tipo calmo e profissional que o Miguel e o Kinas jamais terão. Porquê? Porque um tipo com aquela cara de parvo não pode fazer mal a ninguém. Ele só pode ser bom para estar ali e para ir estando por ali, mesmo quando todo o mundo à volta se desmoronou. O Miguel e o Kinas é que têm o exclusivo de serem maus. Mas eles é que fazem as canções todas – podem e devem ser maus só por isso. O Carlitos só tem de aparecer e a papinha estará quase toda feita. O Miguel e o Kinas já pensaram em mandá-lo embora e trazer um gajo que toque bem. Mas isso dá trabalho e, eh pá, “é o Carlitos, pá”, “o tipo está sempre na boa”, “não há ninguém que nos ature tanto como ele”. Então vingam-se e não dão créditos a mais ninguém. Aquilo é deles. O Carlitos que lhes agradeça a oportunidade de estar com eles. Quando agradecer, será com um empático, “yeah, whatever, I’m in” e depois revirará os olhos e estampará aquele sorriso enjoado sem nunca mostrar os dentes.
Primeiro houve o Abrenúncio. Era um ganda maluco. Vinha com uma ideias esquisitas e mais não sei o quê e o Miguel e o Kinas já estavam a olhar-lhe de lado. É que o Abrenúncio era ainda mais maluco que o Kinas, muito mais bonito que o Miguel e mais polivalente que qualquer um dos dois. Mas o Abrenúncio fez um grande favor em aparecer morto numa piscina. O Miguel e o Kinas lá disseram “tough luck” e seguiram em frente. O Carlitos continuou a fazer cara de parvo e a tocar a música da mesma forma, durante 50 minutos, até que se sentiu cansado e foi beber um chá verde e dar um chuto na veia. E aquele sorriso enfadado nunca mais se lhe descoseu da cara. Depois veio o Miguelito. Tinha boa pinta e tocava guitarra como nunca se vira por aqueles lados. O Miguel até curtia o gajo, faziam uma parelha jeitosa e naquela relação o Miguel tinha a certeza que ficava sempre por cima. Mas o Kinas estava roído de ciúmes. Como solução drogou-se. Ainda mais. E tentava sempre meter o Miguelito a um canto. A sorte do Kinas foi o Miguelito ter-se fartado. “Quer dizer, eu é que faço as músicas, toco os solos e dou um melhor aspecto visual à banda e fico apenas com um co-crédito numa música perdida na imensidão do “Exile On Main St.”? Então e a “Sway”? Todo o “Sticky Fingers”? Vão-se mas é lixar” , disse o Miguelito. O Miguel ainda ficou naquela, mas o Kinas até bateu palmas. E deu mais um risco para comemorar. Estava com um ritmo impressionante. Já era quase fenomenal o Kinas conseguir agarrar numa guitarra, quanto mais ser parte da maior banda do planeta. Mas se nada o matava, as coisas só podiam torná-lo mais fortes. O Carlitos deve ter dito qualquer coisa como “yeah, right” e foi curtir a sua moca para um sítio qualquer. A rainha podia desmaiar a seus pés e o Carlitos se calhar nem lhe dava um pontapé, numa de contestação. Mas também não a iria ajudar a levantar-se. Iria ficar ali, na sua, a tocar de forma repetitiva, num volume imutável, num ritmo constante, no mesmo timbre durante horas e horas a fio e o pessoal ia tomá-lo como um dado adquirido até que o Miguel ou o Kinas saíssem do palco. E aí o Carlitos iria para casa com a mesma roupa, o mesmo sorriso de conveniência, a mesma inexpressão de felicidade. O Carlitos não achava piada a nada mas também não achava que nada fosse especialmente trágico. Muito menos a saída do Miguelito. Provavelmente, o Carlitos nem ficou a saber. E se calhar ainda não sabe hoje. Não tem que saber. Que lhe interessa que entretanto o Ronaldo tenha chegado? A toda a gente o Carlitos envia-lhes um “bah!” insolente e mudo.
O Ronaldo é fixe. Se não fosse fixe não se aguentava mais de 30 minutos com a banda, quanto mais 30 anos. Aprendeu as regras desde o início: droga-te bastante, toca o suficiente e não reclames. O Ronaldo também se permite a mexer como o Miguel, também parece rebentado como o Kinas. Fica ali no meio. É um tipo do rock. O pessoal gosta dele, ele gosta de ser assim, de estar logo abaixo do Miguel e do Kinas e de ser respeitado por isso. É muito mais do rock do que o Carlitos. Até a minha avó conseguia ser mais do rock que o Carlitos. Nada que lhe interesse realmente. O desinteresse do Carlitos parece congénito. Ele aos 5 anos já devia estar chateado com qualquer coisa. Já devia bater nas panelas horas a fio e sempre da mesma forma e nunca batendo demasiado nas tampas para não as deformar. Aquilo não é defeito, é feitio.
Ah, e havia o Gui, que tocava baixo. Sei que ele teve uma filha com uma tipa que tinha idade para ser sua filha. E depois saiu da banda. Este nem sequer tinha cara de parvo. Ou tinha, e muito. Sei lá. Tocava baixo no baixo e estava sempre ao canto. Se perguntarmos ao Carlitos pelo Gui ele vai encolher os ombros. Aposto que já não se lembra dele. Eu próprio me surpreendo por me lembrar do Gui. Mas sei que ele existiu, ao contrário de uma gargalhada ou de um palavrão do Carlitos, que não sei se não serão coisas que pertençam a uma dimensão paralela à nossa. O Gui conseguiu ser ainda mais discreto que o Carlitos, talvez porque, apesar de tudo, o Carlitos fazia mais barulho. Uma proeza que é capaz de admirar toda a gente. Menos o Carlitos, claro. O Carlitos não se impressiona por nada. E olhem que ele já deve ter visto coisas que fariam o Chuck Norris ir chorar para baixo das saias da mamã.

quarta-feira, junho 30, 2010

Na Boa

Houve confusão no bairro social. Escondem-se as caras atrás de janelas partidas, espreitando as câmaras por entre as cortinas rasgadas e com um filho mestiço ao colo. Há medo de represálias externas ao bairro mas principalmente das internas. Bidões ardem na rua e animais vadios vagueiam por entre destroços ou lambem as suas partes baixas sem pudor das objectivas. Várias garrafas ou cacos delas coexistem com sacos de plástico rasgados no chão tornado esgoto, no qual crianças ranhosas brincam com triciclos de duas rodas, uma delas completamente careca. As placas de revestimento dos edifícios descosem-se das paredes rabiscadas, desnudando-se até ao estuque de baixa qualidade. Há gente de pele muito e mal tatuada. Duas dessas pessoas explicam o que se passou, entrecortando-se uma à outra sistematicamente. Um microfone leva esta gente ao descontrolo.
- ‘Távamos na boa, na boa mesmo, e veio a polícia…
- … a polícia começou a bater a torto e a direito, iá?
- E nós estávamos na boa, sempre em paz, a festejar…
- A polícia empurrou a minha avó das escadas abaixo, isso não se faz!
- … ‘távamos a festejar com som e bebida, sempre na boa, ‘távamos só a festejar…
- A minha avó já morreu há duas semanas, hã?!? Não se tratam mortos assim!
- ‘Távamos a festejar o quê, mesmo?
- E depois bateu na minha irmã grávida com um daqueles bastões muita grandes, daqueles que têm laser ou lá o que é, daqueles muita violentos que até aparecem no filme do ET ou lá o que é…
- Ó Vânia, o que é que’ távamos a curtir mesmo?
- A Guerra das Estrelas, assim é que é, a polícia começou a bater na minha irmã grávida com um bastão desses, desses que até zumbem, e zzz-zzz-pás!, fez a minha irmã rebentar as águas e o filho dela saiu disparado pela boca dela, uma cena horrível!
- Ó Vânia, távamos a curtir o quê afinal?
- E depois a polícia espezinhou o filho dela com botas biqueiras de aço com pitons de alumínio, daquelas que a polícia tem, e a minha irmã, na boa, hã?, a perguntar-lhes “isso não se faz nem a um cão” e, pronto, bem dito, bem feito, arrebentaram com a cabeça do cão do meu vizinho que estava a ganir, foi só um polícia à dentada que lhe fez aquilo, uma cena horrível, nunca pensei…
- Ó Vânia, então qual…
- F***-se ó Andreia, não me chateies, pá! Sei lá qual era a cena, o pessoal ‘tava na boa, é o que importa!
- Prontos, estávamos na boa, ali na rua junto ao café…
- E depois a minha irmã começou a citar os situacionistas internacionais e a falar do Clément Duval, na boa, hã?, e eles chamaram-lhe, posso dizer?, vou dizer, chamaram-lhe “p*ta” e “gorda estúpida” e “Júlia Pinheiro” e cenas que nem vou contar mais e espetaram-lhe uma bofetada com a parte de trás da mão com tanta força que até a minha outra irmã que estava no café a 200 metros ouviu, não ouviste, Andreia?
- Eu sou a tua prima, qual é o Vânia, já ‘tás taralhoca?
- Não ‘tava a falar contigo, pá. Foi ou não foi, Andreia?
- [a outra Andreia] Foi sim, até me vieram cair 3 dentes aos pés.
- Foi mem’ assim: a minha irmã com a boca cheia de sangue e sem dentes e com um aborto ainda foi buscar uma figura da Madre Teresa de Calcutá e cassettes de vídeo com o Sérgio Vieira de Mello e isso só fez a polícia perder ainda mais a paciência e eles sacaram de uma bazuca, ou lá o que era aquilo, e rebentaram com a minha casa, o meu prédio e mais dois prédios que ficaram logo a arder e se não fossem os meus vizinhos a mijar rapidamente para cima do fogo isto tinha sido uma tragédia. E depois a polícia destruiu todos os brinquedos do meu filho e do filho dele e do afilhado do filho do vizinho só com as mãos esquerdas, enquanto apalpavam com as mãos direitas e chamavam nomes à minha filha e à filha da filha dela, que ela diz que não é dela mas que tem os mesmos olhos e usa o piercing da mesma forma que ela e por isso acho que a filha é mesmo dela, seja lá quem ela for.
- E nós só estávamos ali na rua, na boa.
- Na boa, hã?, a beber umas cervejas com normalidade, discutindo se o PEC era ou não bom para a retoma económica, se o Nuno Rogeiro não devia deixar o Martim Cabral a jogar Risco sozinho, se Israel é ou não um erro histórico, qual a melhor fase do Monet, Manet ou lá como se chamava o sócio, cenas assim…pá, e de repente a polícia apareceu a arrear no meu irmão, que estava a andar de bicicleta enquanto lia o “Só” do António Nobre depois de um dia de trabalho na Sonae Imobiliária.
- Pá, mesmo de forma brutal, tipo wrestling, mas a sério… eu só vi dentes e ossos pelo ar… o irmão dela, o meu primo, ficou todo desfeito, eram mais de vinte ou trinta polícias a dar-lhe pontapés, socos, murros, caneladas, joelhadas, cotoveladas mais fortes que as do Bruno Alves, cabeçadas, uppercuts, fatalities, babalities, a magia do Sub-Zero, a dar-lhe com bastões e canos PVC e cadeiras e tudo o que viesse à mão… e o meu primo estava na boa… e amanhã vai ter de faltar ao trabalho.
- E ficou com a bina toda partida, ele que andou a juntar dinheiro durante quase 3 anos para comprar isto que era o seu sonho, ir de bina para a Sonae Imobiliária…
- Isso não se faz…
- Isso não se faz… os polícias são uns selvagens, não têm respeito, matam tudo que vêem à frente…
- Mataram-me os manjericos! Olharam para eles e tumba!, murcharam todos! Eu gastei todo o meu dinheiro que ganhei a limpar os instrumentos todos do S. Carlos, oboés e pianos de cauda e coisas assim, nestes manjericos e eles mataram-nos assim! Só com os olhos! Aquela gente é só ódio!
- E têm um arsenal que não se compara… são brutos e parecem que vieram para a guerra. E nós com livros, palavras de paz, símbolos de amor, castidade e austeridade não nos podemos defender.
- Nós estávamos na boa. Não sabemos de nada de mal. Não há cá droga, nem roubo, nem armas, nem fraude nem mesmo incesto… acho eu, pelo menos.
- Só havia uma pessoa má. Era o Albertino. Mas nós convertemo-lo e ele agora é muito religioso. Ele já não faz mal.
- Ele ‘tá limpo, eu juro. Agora já não anda para aí aos tiros como dantes, só dispara para o quintal das traseiras. Na boa.
- Ele ‘tá na boa.
- Iá, ‘távamos todos na boa. Isto não se faz. Olhem para nós como deve ser.
A polícia escusou-se a comentários. Lamentou-se da dificuldade em entrar naquele bairro. Desconheceu se lhes ameaçaram com palavras de filosofia, mas também não negou a ameaça pelo simples facto de desconhecer “que merda é essa, afinal”? Admitiu que teve cuidado para não provocar a surdez dos seus elementos e precaveu-os com protectores auditivos contra os gritos de ciganas esganiçadas e dos seus maridos armados com caçadeiras.
O bairro social quer voltar a estar “na boa”, como sempre reclama. No Verão, quando a Selecção for eliminada de competições internacionais, quando ninguém morre e quando estamos todos a banhos, o bairro social vai voltar a rebentar como uma bomba. Um ou dois detidos e um ou dois constituídos como arguidos, que serão polícias acusados de medidas demasiado violentas. E muito bem constituídos. É um crime fazer alguma coisa contra os crimimosos da base da nossa pirâmide social. Não se pode. Eles, coitados, não fazem nada de mal, apenas têm que libertar algumas frustrações como qualquer pessoa, da maneira que sabem e podem. Eles estão sempre na boa e nós, os outros, a maioria que foge do seu território demarcado, é que não compreendemos os seus códigos, a sua maneira de ser e os seus modos.